Americanas e SUR: risco ou ruído?

Caros investidores,

Um dos provérbios repetidos diversas vezes por Charlie Munger, o sócio da Berkshire Hathaway que completou 99 anos neste mês, é que “para o homem com um martelo, todo problema se parece com um prego”. Em seu estilo sempre lacônico, é uma crítica à tendência de enxergar o mundo de maneira simplificada demais, tentando explicar tudo através de ideias muito restritas, ao invés de buscar entender as nuances e complexidades de cada situação.

Com todas as turbulências que o Brasil tem atravessado, o público de investidores vem acompanhando de perto cada novidade, por menor que seja, sobre economia e política. Não fomos exceção. Dedicamos uma parcela de tempo acima do nosso normal a essas pautas nos últimos meses. Porém, temos a impressão de que as manchetes de jornal têm recebido um peso maior do que deveriam nas decisões dos investidores brasileiros. As novidades têm sido os “martelos” do mercado, consideradas como fatores relevantes nas estimativas sobre o provável futuro da economia mesmo quando tem um caráter muito especulativo ou impacto muito limitado.

Enquanto isso, investidores estrangeiros compraram cerca de R$ 120 bilhões em ações na bolsa brasileira nos últimos 12 meses, vendidas por investidores locais. Ou seja, estrangeiros estão “apostando” que o futuro de nossa economia será melhor do que os próprios brasileiros acreditam. Só um dos lados pode estar correto.

Fonte: BTG (Brazil: Follow the Money)

Há um detalhe importante: as vendas dos investidores institucionais brasileiros não foram puramente motivadas pelas opiniões de seus gestores. Fundos de ações e multimercado sofreram resgates de R$ 146 bilhões neste período, o que obriga os gestores a venderem para que possam devolver o dinheiro a seus cotistas. Assim, esse movimento de venda é um reflexo da decisão de alocação do público final de investidores brasileiros, que é especialmente suscetível à síndrome do “homem com um martelo” por dedicarem bem menos tempo que investidores profissionais se aprofundando em análises econômicas.

Para ilustrar como alguns fatos recentes podem ter causado maior impacto do que o justificável, vamos comentar dois casos que ganharam atenção no último mês: o rombo das Lojas Americanas e o anúncio do novo governo sobre a intenção de criar uma moeda comum com a Argentina, o SUR.

O rombo das Americanas

De tempos em tempos é revelado um grande caso de fraude nos mercados. Em 2020 foi o da IRB Brasil. Neste mês, o das Americanas que, ao que parece até o momento, deixou de contabilizar em seus balanços patrimoniais R$ 20 bilhões em dívidas. O caso ganhou tanta atenção da mídia que há diversas matérias explicando o que aconteceu e especulando sobre o possível futuro da empresa, então vamos assumir algum conhecimento prévio e apenas compartilhar nossos comentários a respeito.

O valor das dívidas ocultadas é tão grande que a empresa não tem nenhuma chance de salvação sem injeção de capital novo, mas, de um ponto de vista puramente pragmático, o caso é trágico para os acionistas das Americanas, que viram seus investimentos na empresa ser reduzidos a pó da noite para o dia; ruim para os credores e fornecedores da companhia, que não irão receber tudo que lhes é devido; indiferente para a maior parte do mercado, que não tinha nenhuma relação com as americanas; e bom para as varejistas competidoras, que vão poder abocanhar boa parte da fatia de mercado até então ocupada pelas americanas.

O maior grupo entre esses quatro é o dos indiferentes ou pouco afetados. O rombo foi gigantesco para a empresa, que valia R$ 10 bi em bolsa, mas não tão relevante para a bolsa em si, cujo conjunto de empresas listadas hoje vale cerca de R$ 4,2 trilhões. No entanto, o tema ganhou tamanha projeção nos mercados que chegou a aumentar o custo geral de operações de crédito privado.

Bancos e gestores de fundos de crédito se tornaram subitamente mais conscientes sobre esse tipo de risco (que sempre existiu) e passaram a superestimar sua relevância ao calcular as taxas de juros adequadas para cada empréstimo. Há um episódio completamente diferente que ilustra bem essa reação exagerada a um risco recém materializado.

Em 11 de setembro de 2001, dois aviões foram sequestrados por terroristas e lançados contra os prédios do World Trade Center (as torres gêmeas) nos Estados Unidos. Depois disso, o número de passageiros de avião nos Estados Unidos subitamente caiu mais de 30% em relação ao número de passageiros nos meses anteriores. Com a memória do ataque terrorista fresca em suas mentes, o medo de voar aumentou e inúmeras pessoas decidiram substituir viagens de avião por viagens de carro, uma decisão bastante compreensível e intuitiva à psicologia humana, mas completamente irracional. O risco de morte em viagens aéreas é muito menor do que o risco de morte em viagens rodoviárias (atualmente, cerca de 18 vezes menor para aviões comerciais). Assim a decisão de viajar de carro, incentivada pela memória recente do ataque, matou milhares e milhares de pessoas ao redor do mundo. Uma tragédia muito mais silenciosa do que a das pessoas que estavam nos prédios atacados, mas tão letal quanto.

Em nossa última carta, falamos sobre as dificuldades de manter a racionalidade mesmo quando ela aponta para uma direção diferente do que é intuitivo. Certamente seria desconfortável pegar um voo vendo fotos da colisão dos aviões envolvidos no ataque terrorista em todas as capas de jornais, mas ainda assim seria a decisão racional. Uma das habilidades mais importantes para um investidor cultivar, é a de agir de acordo com o que faz sentido, ao invés de agir do modo psicologicamente mais confortável.

Um último comentário sobre Americanas antes de seguirmos adiante: para evitar o investimento na empresa, não era necessário detectar a fraude, algo muito difícil de se fazer olhando a empresa de fora, bastava notar que ela teve 9 anos de prejuízo nos últimos 10 anos e dependeu de vários aportes de capital seguidos para se manter solvente. Não são traços de um bom negócio.

O devaneio sobre o SUR

Em sua primeira viagem diplomática à Argentina, o novo presidente anunciou a possível criação de uma moeda comum para facilitar transações comerciais na América Latina, com nome sugerido de SUR. O episódio causou algum alvoroço inicial, mas reverberou muito menos no mercado do que o caso das Americanas, imaginamos que, pelo consenso de diversos especialistas, o plano não deve sair do papel. Em nossa própria análise sobre como poderia evoluir um projeto desta natureza, buscamos entender em que estágio estava o Mercosul quando comparado à história da União Europeia.

Em 1957, surgiu a Comunidade Econômica Europeia (CEE), o bloco econômico que precedeu a União Europeia e já nasceu estabelecendo o livre comércio e translado de mão de obra nos países signatários. Após 13 anos (1970), foi criado um grupo encarregado de elaborar um plano de unificação da moeda dos países membros, cuja implementação foi inicialmente frustrada pela complexidade de alinhar várias moedas em meio a instabilidades cambiais. Só 9 anos depois (1979) foi que surgiu a European Currency Unit (ECU), uma moeda escritural usada para transações financeiras entre os países do bloco econômico. A ECU evoluiu para o Euro 20 anos depois (1999), e a adoção do Euro como moeda de circulação ainda levou outros 3 anos (2002).

Se equipararmos o anúncio recente sobre a intenção de avaliar a criação do SUR com a criação do grupo de estudos europeu que surgiu em 1970 e seguirmos a mesma linha do tempo a partir desse ponto, o Sur nasceria em 2032 como algo similar ao que foi a ECU e se tornaria uma moeda comum de circulação em 2055. Mesmo se houver boa vontade política agora, há tantas complexidades e percalços que dificilmente algo assim é possível de implementar em apenas um mandato presidencial, então seria necessário o apoio de governos consecutivos em ambos os países para que algum dia ele saia do papel. Pode nunca acontecer.

Esse breve histórico já é suficiente para afastar preocupações de possíveis impactos que esse projeto poderia ter no curto prazo. Considerando também a enxurrada de críticas que a ideia recebeu, é possível que o novo governo sequer queira gastar capital político levando esse tema adiante.

O mundo gosta de novidades

O risco de acompanhar com muita avidez esses eventos econômicos e políticos é, aos poucos, ir perdendo a visão do todo. No anseio de considerar cada novidade, começar a esquecer dos fatores estruturais que se desenvolvem lentamente, mas têm impacto maior.

Na carta que publicamos em novembro, falamos sobre o impacto positivo que a tendência de descentralização de cadeias produtivas, hoje muito dependentes de países asiáticos, poderia trazer para o desenvolvimento econômico do Brasil. Na mesma direção, o plano de descarbonização da economia pode tornar a matriz energética brasileira, muito mais limpa do que a média, um atrativo para novos investimentos em nosso país. Esses fatores vão permanecer válidos ao longo de vários anos, mas tendem a ser esquecidos pelo público geral e dar espaço às novidades, por menos relevantes que sejam em comparação às notícias antigas.

Apesar das novidades impactarem os preços de ações no curto prazo, os movimentos de preço no longo prazo são muito mais correlacionados com os resultados financeiros gerados por cada empresa. Assim, é necessário um esforço constante para manter a frieza e ceticismo diante dos temas do momento, separando o que realmente pode causar um impacto duradouro do que é apenas ruído. Especialmente em relação a pautas políticas, onde a taxa de ruído é grande.

O que enxergam os compradores?

Olhando o cenário brasileiro de longe, com mais amplitude de visão e menos atenção a cada intempérie política, nossos dramas fazem parte da normalidade do país: o Brasil está sempre passando por polêmicas e escândalos. As especificidades do drama atual são pouco relevantes nas perspectivas de longo prazo. O mais provável é que o Brasil continue com o baixo crescimento econômico que vem apresentando nas últimas décadas, fruto de uma legislação confusa, desafios enormes de produtividade e um Estado ineficiente.

Apesar de ser um prognóstico não muito animador, esse cenário base já está refletido nos níveis médios de preços do mercado local. Por isso é que os juros reais são mais altos e os múltiplos de valuation de empresas no Brasil são mais baixos do que em economias desenvolvidas. O que motiva os investidores que estão comprando agora, estrangeiros ou não, é certamente o nível de preços atual, bastante abaixo das médias que já levam em consideração nossa economia sempre morna. É um patamar de desconto que compensa uma boa dose de riscos macroeconômicos e políticos.

Já temos falado que os preços estão baixos há vários meses e o fato de ainda não termos visto uma reversão de tendências no mercado pode incomodar os mais afoitos, então vale sempre reforçar que o momento de reversão é imprevisível e pode demorar vários meses. Investimos pensando sempre no longo prazo, não por gostarmos de ganhar dinheiro devagar, mas por acreditarmos ser a abordagem mais segura e assertiva possível.

Dia 08/02 faremos uma live via Zoom comentando sobre a carta desse mês. Inscreva-se clicando aqui.

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