Caros investidores,
É curioso o quanto se popularizou no Brasil a discussão sobre política monetária, uma área bastante técnica e complexa mesmo para os profissionais do mercado. O que todos já aprenderam é que juros altos reduzem a inflação e que o déficit fiscal do governo aumenta a inflação. A coisa se complica um pouco quando ouvimos que, mesmo com a inflação sob controle, ainda é preciso maior compromisso do governo com a responsabilidade fiscal para controlar também a expectativa de inflação futura. Do contrário, os juros continuarão altos.
Para os que não são especialistas em macroeconomia e política monetária, que certamente é o nosso caso, há sempre o perigo de se perder entre os jargões e abstrações, criando certa dificuldade de julgar a coerência do que está sendo discutido. Argumentos complexos e abstratos têm mais chance de encobrir erros. Por isso, preferimos as análises simples e diretas, sem floreios ou pompas.
Com essa preferência em mente, vamos discutir o que está acontecendo com a política monetária brasileira e como lidamos com a situação em nossos investimentos, do jeito mais simples possível.
A taxa SELIC e seu impacto na economia real
A função básica de um banco é captar dinheiro no mercado e emprestar esse dinheiro a uma taxa mais alta. A diferença dos juros pagos na captação e os juros cobrados nos empréstimos é chamada de spread bancário, a principal fonte de receita operacional dos bancos.
Nesse emaranhado de captações e empréstimos, é comum um banco terminar o dia com caixa em excesso ou em falta, mas não é permitido que bancos terminem o dia com saldo negativo em sua “conta corrente”. Para resolver esse problema, existe o Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), que viabiliza que os bancos emprestem dinheiro uns aos outros por prazos curtos, tipicamente apenas um dia, para que suas contas não fiquem negativas nos fechamentos de caixa diários. A taxa de juros cobrada nesses empréstimos diários é a Taxa SELIC, chamada de taxa básica de juros porque é o retorno obtido com a operação de crédito de menor risco existente no país.
A princípio, essa taxa poderia ser definida livremente pela oferta e demanda de capital existente no mercado. Porém, o Banco Central atua no SELIC emprestando (ou tomando emprestado) dinheiro na taxa determinada como Meta SELIC. Como o Banco Central participa de uma parcela expressiva do volume total dessas operações diárias de crédito, a taxa praticada por ele é uma forte referência para a taxa de todo o mercado. É assim que o Banco Central controla a taxa básica de juros da economia nacional.
Com a opção de emprestar dinheiro para o Banco Central à taxa básica de juros, não faz sentido emprestar dinheiro a qualquer empresa ou pessoa a uma taxa menor. Como os bancos ainda precisam do spread bancário para cobrir seus custos de operação e remunerar o capital próprio investido, todos os empréstimos, com exceção dos subsidiados, são feitos a juros mais altos que a taxa SELIC. Ou seja, quando ela sobe, o dinheiro emprestado no Brasil fica mais caro.
O efeito do aumento de juros é bastante amplo. Como a maior parte das empresas tem algum nível de endividamento, passam a gastar mais com o pagamento de juros ou com quitações dessas dívidas, agora mais caras, e sobra menos capital para investimentos em crescimento ou inovação. Créditos para os consumidores também ficam mais caros, então se torna mais difícil realizar qualquer compra financiada, incluindo as compras de varejo em 12x sem juros (leia-se preço à vista com juros do parcelamento em 12x). A consequência natural é que a demanda do mercado interno diminui e, pelo tradicional mecanismo em que os preços são determinados pelo equilíbrio entre a oferta e a demanda, os preços tendem a cair. É assim que os juros altos ajudam a controlar a inflação, com o efeito colateral de dificultar o crescimento da economia.
Responsabilidade fiscal, inflação e juros
Responsabilidade fiscal significa, simplesmente, o governo gastar menos dinheiro do que ganha. A regra é tão universalmente aplicável que o estranho é haver a longa discussão sobre se o governo deveria ou não segui-la. A situação se torna mais compreensível quando consideramos as perversidades práticas da política.
Um governo que gasta desenfreadamente durante seu mandato gera déficit, mas ganha popularidade entregando obras e programas sociais, da mesma maneira que um consumidor desenfreado aproveita com alegria suas compras até que chegue a fatura do cartão de crédito. O detalhe é que, para o governante, a “fatura do cartão de crédito” pode ser postergada até o próximo mandato. Quem herdar o governo terá um problema nas mãos: ou restringe gastos para reequilibrar as finanças públicas, uma medida sempre impopular, ou agrava ainda mais o problema mantendo o déficit. Se a decisão de restringir gastos vier de um governante da oposição, o responsável pelo endividamento contraído no mandato anterior ainda fará comparações dizendo que entregou muito mais à população durante seu mandato, sem entrar no mérito do dano causado às finanças públicas no processo. Frustrações políticas a parte, vamos ao que acontece quando o governo aumenta seus gastos.
Pelo grande porte do Estado, quando ele gasta mais, a demanda total do mercado interno por bens e serviços aumenta de forma não desprezível e é gerada uma pressão de alta de preços, devido ao mesmo mecanismo de equilíbrio entre oferta e demanda que já comentamos. Ou seja, o aumento de gastos pelo governo contribui para o aumento da inflação.
Um segundo problema é que déficits fiscais levam o governo a, obrigatoriamente, aumentar o endividamento público. Se esse regime for mantido por tempo demais, há um ponto em que o governo não tem mais como arcar com os juros da dívida e nem emitir dívidas adicionais, pois não haverá mais interessados em emprestar mais dinheiro ainda para um governo que sempre fecha as contas no vermelho. Nessa situação, restariam duas opções: o governo declarar moratória, uma medida extrema em que se suspende os pagamentos relacionados à dívida pública, causando um enorme dano à reputação do país; ou emitir mais moeda através do banco central e usá-la para pagar a dívida. Há quem veja nessa segunda solução uma fórmula mágica para resolver o problema. Porém, como não é possível gerar valor econômico do nada, a simples impressão de mais moeda só faz com que a mesma quantidade de bens que um país tem seja representada por um volume maior de dinheiro e, assim, o valor da unidade monetária diminui, fazendo com que os preços nominais aumentem. É uma segunda maneira de gerar inflação.
Há mais um efeito negativo. Déficits reincidentes fazem com que investidores percam a confiança na sustentabilidade das contas públicas. Essa falta de confiança reduz o ingresso de capital estrangeiro e, portanto, também reduz o volume de compras de moeda local. Além do problema óbvio de receber menos investimentos, a menor demanda pela compra de reais faz com que nossa moeda se desvaloriza e as taxas de câmbio se tornem menos favoráveis para importações. Ou seja, o dólar sobe e o preço de tudo que é importado aumenta. Como uma parcela relevante do consumo brasileiro vem de produtos importados (cerca de 20%), a alta do dólar também aumenta a inflação.
Enquanto isso, o papel do Banco Central continua sendo o de controlar a inflação através da única ferramenta sob seu comando: a política monetária. Assim, quanto maior o déficit fiscal, maior o efeito inflacionário e mais o banco central tenderá a aumentar (ou manter alta) a taxa básica de juros.
Onde surge a complexidade
Se esses mecanismos pudessem ser analisados isoladamente, não seria uma tarefa tão difícil entender a situação e projetar as evoluções prováveis. No entanto, todos eles agem simultaneamente sobre a economia e tem efeitos além dos previstos pela mecânica simplificada que descrevemos. Por exemplo, aumentar os juros reduz a inflação em um primeiro momento, mas dificulta o equilíbrio das finanças públicas, pois torna os juros pagos pelo governo mais altos e reduz o crescimento da economia, reduzindo assim os impostos arrecadados. Como déficit fiscal aumenta a inflação, o efeito colateral do aumento de juros pode piorar o problema da inflação no médio prazo, da mesma forma que um remédio em dose exagerada mais prejudica do que ajuda o paciente. Calibrar qual é a taxa de juros ideal não é uma ciência exata. O Banco Central utiliza modelos matemáticos para calcular qual seria a taxa de juros neutra, aquela que não aceleraria nem desaceleraria a economia, e ajusta sua política monetária de acordo. Porém, o modelo é teórico e só se sabe o efeito real através da boa e velha tentativa e erro. Por isso que o Banco Central muda a taxa de juros aos poucos. Sobe 0,25% e espera para ver o que acontece. Desce 0,25% e espera para ver o que acontece.
Ainda há a questão das expectativas. Apesar de ser um elemento subjetivo, seu impacto sobre a economia é real. Quando empresários e investidores acreditam que a inflação futura será alta, eles incorporam essa premissa em seus cálculos e tomam decisões de negócios de acordo. Aumentam os preços de venda de seus produtos, antecipando aumentos em seus custos de produção, e exigem taxas de retorno mais altas em seus investimentos para compensar o risco associado à inflação (e.g.: custos subirem mais do que seja possível repassar nos preços). Assim, a inflação real tende a convergir para a inflação esperada, em uma forma de profecia autorrealizável.
Por sua vez, as expectativas de inflação são guiadas pelo que o mercado espera que o Banco Central e o governo façam ao longo do tempo, já que são os agentes com poder real para influenciar a economia de forma significativa. Quando ambos agem de maneira consistente e coordenada, o cenário é mais estável. Quando agem de forma errática e há atrito entre governo e banco central, acontece o que estamos vivenciando no Brasil. Ninguém sabe ao certo como será o futuro e as expectativas oscilam também de forma errática.
O que fazer nos investimentos
Em cenários complexos e instáveis, preferimos admitir a incerteza em toda sua amplitude do que superestimar nossa habilidade de prever o futuro. Toda essa discussão ao redor de responsabilidade fiscal, política monetária, inflação e juros compõe um cenário complexo e instável. Então, ao invés de tentar projetar (ou adivinhar) qual será a próxima decisão do COPOM sobre a taxa SELIC e seus impactos sobre a inflação, buscamos nos posicionar em investimentos que tendam a gerar uma boa taxa de retorno independentemente da rota exata que os juros e a inflação sigam ao longo dos anos.
Repetimos com certa frequência em nossas cartas quais são esses investimentos: ações de boas empresas, com vantagens competitivas sustentáveis, histórico de alta rentabilidade e modelo de negócios resiliente. Empresas assim costumam ser capazes de sobreviver e prosperar porque geram valor econômico real. Avançarão mais rápido quando o cenário macroeconômico for favorável e resistirão da melhor forma possível quando ele for desfavorável. Em longos períodos, tendem a gerar bons retornos médios sobre o capital investido na operação.
Admitimos as incertezas das variáveis macroeconômicas e evitamos investir tempo tentando projetar aquilo que não pode ser previsto com assertividade suficiente para sustentar uma tese de investimentos com bom potencial de retorno e risco controlado. Preferimos passar nossos dias monitorando as empresas de nosso portfólio, avaliando outras empresas listadas e estudando ciclos microeconômicos de setores que chamem nossa atenção.
Nossa estratégia tem uma essência simples. Buscamos identificar empresas listadas que tenham as características mencionadas, calculamos um valor justo para suas ações assumindo um cenário bastante conservador nos pontos que não conseguimos prever com precisão e esperamos até que exista a oportunidade de comprá-las a um preço baixo o suficiente para que o investimento seja razoavelmente rentável mesmo nesse cenário pessimista. O que vier acima disso é lucro. Literalmente.
Confiram os comentários de Ivan Barboza, gestor do Ártica Long Term FIA, sobre a carta desse mês no YouTube ou no Spotify.