Caros investidores,
Mark Twain dizia que a história não se repete, mas ela rima. Vivemos um ciclo de juros altos nesses últimos anos, agora se encaminhando para o fim, que fez com que a maior parte do mercado se mantivesse avesso a investimentos em renda variável por um longo período. No início de 2023, quase ninguém considerava alocar mais capital em ações. Mesmo entre investidores profissionais, o senso comum era caminhar na direção contrária, pois entendiam que não fazia sentido investir em bolsa com a renda fixa tão rentável. No entanto, entre o auge do pessimismo com o Brasil (março) e o término do ano, a bolsa subiu 30%. Mais uma vez, o momento de maior pessimismo e de juros mais altos se mostrou o melhor para aumentar a alocação de capital em renda variável.
Esse mesmo ciclo de juros alto que causou aversão à bolsa e preferência por renda fixa, justamente quando o inverso seria favorável aos investimentos, já aconteceu várias vezes e está fadado a continuar se repetindo. Mesmo sabendo disso, a maior parte das pessoas irá se comportar da mesma forma que se comportou nos ciclos anteriores. Os erros humanos se repetem há milhares de anos, não por serem desconhecidos, mas pela natureza humana continuar sendo a mesma e carregar, cronicamente, as mesmas falhas já mapeadas desde a antiguidade.
Há algumas coisas que podemos fazer para evitarmos fazer parte desses equívocos coletivos. Uma delas é entender como esses movimentos pendulares de mercado se desenrolam ao longo do tempo. Falamos sobre isso na carta de março de 2023. Outra é ter uma abordagem mais realista e filosófica sobre o futuro da economia e a possibilidade de prevê-lo. É deste tema que falaremos aqui, aproveitando para contar sobre como algumas de nossas teses evoluíram ao longo do ano passado.
O que define a história são os eventos imprevisíveis
Projeções econômicas sempre consideram as informações disponíveis no momento e os eventos de maior probabilidade como componentes do “cenário base”, que será extrapolado a partir de determinado prazo sem considerações adicionais. Não há jeito melhor de quantificar um futuro imprevisível, mas a ausência de um método mais eficaz não torna esse perfeito. O que costuma invalidar completamente essas projeções são eventos imprevisíveis, seja por serem inimagináveis à época das projeções ou por terem probabilidade de materialização tão baixa que acabam sendo descartados das simulações de cenários.
A história é repleta de eventos dessa natureza. No passado recente, o evento com maior impacto econômico ao redor do mundo era completamente imprevisível: a pandemia. Antes da crise emergir, era impraticável considerar, em qualquer modelo financeiro, a probabilidade de ocorrência de uma pandemia global. Mais impraticável ainda era dedicar esforços para detalhar a hipótese sobre o que aconteceria com cada empresa caso a improvável pandemia se materializasse.
Da mesma forma, não é possível prever e considerar as diversas possibilidades relacionadas a um amplo leque de fatores bastante impactantes em modelos econômicos, como evolução tecnológica, resultados de disputas políticas, eclosão ou resolução de guerras, modismos massivos etc. Sabemos que teremos surpresas no futuro, mas não sabemos quando acontecerão, quão impactante serão e se o impacto será negativo ou positivo. Esse elemento de aleatoriedade é impenetrável. Não há grau de competência ou de esforço que elimine a imprevisibilidade de boa parte do que o futuro nos reserva.
É crítico absorver esse fato da realidade em toda sua amplitude, pois a psicologia humana busca evitar o estado de dúvida a todo custo, o que gera a tendência de adotar narrativas coerentes como o “caso base” e atribuir a ele um grau de confiabilidade muito maior do que realmente possui. Assim, substituímos o estado realista da incerteza pelo conforto de uma ilusão de conhecimento sobre o futuro.
O risco de erro mais comum nessa busca por prever o futuro da economia é se satisfazer ao encontrar uma narrativa de eventos que lhe parece coerente e factível. Intuitivamente, isso faz sentido, mas há inúmeras possibilidades de cenários futuros que são igualmente coerentes e factíveis. Imaginar todos esses cenários, ponderar a probabilidade de materialização de cada um e estender esse tipo de análise para eventos sequenciais por um período longo é uma tarefa que rapidamente transborda o nível de complexidade com o qual é possível lidar. Por isso, do ponto de vista pragmático, o melhor a se fazer é ser realista sobre o tanto de incertezas são inerentes às projeções macroeconômicas.
Porém, nem tudo é imprevisível
Neste mundo repleto de aleatoriedades, há pontos que são mais previsíveis por envolverem fatores inalteráveis ou que se movimentam tão devagar que dificilmente causariam grandes surpresas. São esses pontos de estabilidade que buscamos identificar e que servem de âncoras para as boas teses de investimento.
Por exemplo, é seguro assumir que as pessoas vão continuar viajando entre cidades de tempos em tempos, sem enormes variações na quantidade de viagens realizadas em janelas de vários anos. Há poucas opções de transporte para distâncias de centenas de quilômetros. No Brasil, as opções são carros, ônibus ou aviões. Cada modal de transporte tem diferentes níveis de conforto, velocidade e custo. Os três coexistem há muitos anos e o número de passageiros que é escoado por cada um deles se altera muito lentamente, sendo razoável esperar que continue existindo demanda para os três segmentos.
No segmento dos ônibus, o tamanho da frota de veículos de um país é bastante estável, uma vez que atende a demanda de viagens pulverizada entre milhões de passageiros. Assim, a venda de novos ônibus depende basicamente do ciclo de substituição de veículos velhos por novos, motivada pelo fato de que ônibus velhos quebram mais, ocasionando maiores custos de manutenção e problemas de operacionais (como um ônibus cheio de passageiros quebrar no meio da estrada). Sob essa lógica bastante simples, é razoável inferir que quanto mais velha for uma determinada frota de ônibus, maior é a chance de o volume de vendas de ônibus aumentar no futuro próximo.
Esse racional foi a base de nossa tese de investimentos em Marcopolo, que fabrica carrocerias para novos ônibus. Não teve papel relevante nesta tese nenhuma premissa sobre movimentos políticos de nosso país, curvas de juros, expectativas de recessões locais ou globais. Simplesmente vimos a frota de ônibus brasileira ficar muito mais velha do que seu patamar normal e inferimos que a demanda futura por novos ônibus seria impulsionada pela pressão operacional que os problemas com ônibus velhos causariam. Depois de entendida essa configuração, a conclusão de que a Marcopolo se beneficiaria era um passo pequeno, pois a empresa lidera o setor e atende cerca de metade da demanda brasileira por novos ônibus. Essa foi a tese que nos trouxe maior retorno em 2023, com uma alta de preços de mais de 150%.
Via de regra, quanto mais próximas do mundo concreto forem as premissas adotadas como ponto de partida e quanto mais simples forem as inferências feitas a partir delas, maior é a chance das conclusões se provarem corretas. Prever que ônibus mais velhos vão ter mais problemas mecânicos e isso levará seus donos a trocá-los por ônibus novos é muito mais fácil do que prever o que políticos farão com a economia nacional ao longo dos anos.
No entanto, nem sempre foi tão prazeroso quanto agora falar sobre essa tese de investimento, pois esperamos alguns anos até acontecer o que havíamos previsto. Isso nos leva ao próximo ponto.
É mais fácil prever o que vai acontecer do que quando
O cenário sobre Marcopolo que descrevemos parece óbvio em retrospectiva, mas compramos nossas primeiras ações da empresa ao final de 2019. A frota já estava velha naquela época. Não prevíamos a pandemia, que afetou a demanda de viagens globalmente, algo extremamente atípico e imprevisível. Depois do retorno do fluxo de passageiros em viagens de ônibus intermunicipais, aumentamos bastante nossos investimentos em Marcopolo. Isso foi pouco antes de publicarmos a carta de outubro de 2021, explicando essa tese. Ainda esperamos um ano e meio, até o início de 2023, para que a empresa começasse a melhorar substancialmente seus resultados.
Mesmo ancorados em eventos com alta chance de se provarem corretos, o momento de materialização do evento é um risco sempre presente em investimentos. Sem a pandemia, nosso investimento provavelmente teria se tornado rentável muito tempo antes e com um retorno anual médio sem dúvida maior. Se a demanda por novos ônibus se mantivesse baixa por mais alguns anos, a taxa de retorno anual poderia se tornar medíocre mesmo que acontecesse o que prevíamos no final da história.
O melhor que podemos fazer para lidar com essa incerteza temporal é entender a ordem de grandeza dos períodos que podemos ter que esperar até que o evento se realize – no caso de Marcopolo, sabíamos que a frota velha não resistiria a uma década sem renovações, mas poderia muito bem aguentar mais alguns anos – e exigir, no preço de compra, uma margem de segurança que torne a taxa de retorno aceitável mesmo em um cenário de longa espera, que certamente fizemos ao alocar capital em ações da Marcopolo.
Há uma boa dose de sorte envolvida em investir no momento ideal. Em outras duas teses relevantes de nosso portfólio, tivemos experiências distintas. Em Porto (antiga Porto Seguro), líder em seguros automotivos no Brasil, previmos que a rentabilidade do negócio melhoraria após um reajuste de preços das apólices de seguros de veículos feito em 2022. Isso aconteceu já ao longo de 2023, um prazo relativamente curto que não exigiu nenhuma grande convicção de nossa parte para manter a tese em carteira. Por sua vez, nossa tese de investimento em Multi (antiga Multilaser), abordada na carta de setembro de 2023, ainda está passando por sua prova de fogo e pode ter alguns meses difíceis no futuro próximo. É uma tese também de retomada da antiga rentabilidade, com uma margem de segurança bastante expressiva ao preço atual das ações.
Essa imprevisibilidade temporal, mesmo em eventos extremamente prováveis, é que torna a paciência uma virtude importante nos investimentos. A cronologia dos fatos segue seu próprio curso, ignorando completamente a forma com que nossos anseios evoluem no tempo. Diante da inflexibilidade do mundo, não há saída diferente de nós mesmos nos adaptarmos aos fatos e planejarmos nossas estratégias de investimento adequadamente.
Alguns erros são inevitáveis
Por conta dessas incertezas relacionadas ou à ocorrência de determinados eventos ou ao momento em que eles se materializarão, é impossível elaborar uma tese de investimentos em economia real que seja 100% garantida. Até porque, a possibilidade de azar é tão real quanto a de sorte. O que nos leva ao caso de uma outra tese de investimentos: Blau.
A Blau é uma farmacêutica historicamente rentável e com bom ritmo de crescimento. Um de seus principais medicamentos é a imunoglobulina, que tem boa parte de sua demanda nacional proveniente do Ministério da Saúde, que realiza licitações de tempos em tempos. A capacidade produtiva dos fabricantes de imunoglobulina no Brasil é compatível com o nível de demanda total do país, incluindo o volume comprado pelo Ministério da Saúde.
Em 2023, a licitação de imunoglobulina demandou um volume atipicamente alto, superior ao que os fabricantes nacionais eram capazes de atender. Com isso, o Ministério da Saúde conseguiu uma permissão extraordinária para permitir que empresas internacionais, sem registro na ANVISA, participassem do leilão. Com isso, fabricantes com menor rigor nos processos produtivos e sem os custos relacionados ao licenciamento na ANVISA venceram o leilão e tiraram todo o volume de medicamentos tipicamente atendido pelos fabricantes nacionais. Por consequência, o volume fabricado no país foi todo destinado ao setor privado, causando um nível de competição de preço atipicamente alto que deteriorou as margens do segmento.
Não ficou claro nem para as empresas do setor porque o volume da licitação foi tão alto, já que parece incompatível com o nível de consumo da saúde pública para o período e há uma investigação em curso para apurar se houve irregularidades nessas compras de fabricantes internacionais. Esse tipo de evento é muito difícil de prever e precificar. A princípio, poderia ser atribuído a qualquer empresa que atenda o setor público, mas é algo pouco frequente e sempre uma surpresa negativa quando acontece de fato.
Por conta desse revés, da falta de visibilidade de como serão conduzidas as próximas licitações, e uma perspectiva ruim para o futuro próximo do setor de serviços de saúde como um todo, que está financeiramente pressionado, decidimos diminuir bastante nossa alocação de capital em Blau. Ainda gostamos do negócio, mas preferimos migrar a maior parte do investimento para empresas com menos incertezas associadas.
É vital adotar um bom método consistentemente
Diante da existência dessas aleatoriedades nos investimentos, mesmo a melhor estratégia executada com perfeição não trará bons retornos a todo momento. Haverá anos bons e anos ruins. Somente após períodos longos é que se torna evidente quais estratégias funcionam bem ou mal. Com os ciclos econômicos durando tipicamente 5 ou 6 anos, esse acaba sendo o período mínimo para julgar os resultados de uma estratégia, considerando que ela foi aplicada de maneira consistente ao longo desse tempo. Isso levanta dois pontos de atenção.
O primeiro é que seguir o instinto de ajustar o método de investimentos de acordo com resultados em períodos curtos é completamente ineficaz. Não só tende a gerar resultados ruins, pois a estratégia que teria funcionado bem no passado recente dificilmente será a que vai dar bons frutos no futuro próximo, mas alterar o método com frequência também torna impossível julgar o que funciona de verdade. É como se um médico, em busca de um tratamento efetivo, resolvesse testar um medicamento diferente em cada paciente. Acabaria misturando os fatores não aleatórios com os aleatórios e tornando qualquer tentativa de análise dos dados completamente inconclusiva.
O segundo ponto de atenção é que os ciclos de investimento são muito longos. Com sorte, um investidor viverá 10 ou 12 ciclos econômicos em sua vida adulta. Esse é um número bastante baixo de oportunidades para colocar à prova um método de investimentos. Assim, aprender a investir empiricamente é uma estratégia ruim. O bom caminho é estudar o maior número de casos de investimento e ciclos econômicos passados, para não usar o próprio tempo de vida como balão de ensaio para aprender a investir.
Adotamos essa estratégia no Ártica desde o início, há mais de 10 anos. Selecionamos uma filosofia de investimentos antiga, que já gerou bons retornos de forma consistente para gerações passadas de investidores, e estudamos continuamente para aperfeiçoar nossos métodos pouco a pouco. Desta maneira, felizmente, também temos conseguido atingir bons resultados ao longo dos anos.
Confiram os comentários de Ivan Barboza, gestor do Ártica Long Term FIA, sobre a carta desse mês no YouTube ou no Spotify.