O caos tributário brasileiro e as propostas de reforma

Caros investidores,

Boa parte da tensão política relacionada ao novo governo tem girado em torno do tema de responsabilidade fiscal. Em resumo, o novo governo declarou a lei do teto de gastos como inadequada e apresentou um novo arcabouço fiscal que resiste à ideia de cortar gastos e, por consequência, depende de aumentos na arrecadação de impostos para eliminar o déficit fiscal. Por sua vez, o aumento de arrecadação só pode vir de duas fontes: ou do crescimento da economia do país, ou de uma maior alíquota de impostos efetivamente cobrada pelo governo. Ambos os caminhos são difíceis, pois o crescimento econômico não depende só do governo e há muita resistência em aumentar alíquotas no Brasil, onde a carga tributária já está entre as mais altas dentre os países emergentes.

Essa problemática fez com que o governo reacendesse um antigo debate político brasileiro: a necessidade de realizarmos uma ampla reforma tributária, que poderia, ao mesmo tempo, impulsionar o crescimento econômico do país, através dos ganhos de produtividade que a simplificação de nosso sistema tributário proporcionaria; e aumentar a alíquota efetiva dos impostos recolhidos, não através do aumento das alíquotas base, mas através da eliminação de uma série de benefícios fiscais existentes hoje. Não é à toa que essa pauta vem ganhando força nos últimos meses.

Acreditamos que esse tema seja de interesse de todos os empresários e investidores que atuam no Brasil, apesar de não ser um dos mais empolgantes de se aprender, pois a reforma tributária afetaria todas as empresas que operam sob jurisdição brasileira, tanto na forma de apurar e recolher seus impostos quanto nos valores devidos. Assim, falaremos sobre os principais problemas do nosso sistema tributário atual, as propostas mais recentes para a reforma tributária e como estamos considerando esses fatores em nossas decisões de investimento.

Os problemas do atual sistema tributário brasileiro

Imagine que um condomínio residencial decida abandonar seu modelo tradicional de taxa única por apartamento e “evoluir” para um sistema de taxas mais justo. Um primeiro ponto é que apartamentos com mais moradores tendem a utilizar mais as áreas comuns, então faz sentido existir uma taxa baseada no número de moradores de cada unidade. O playground só é utilizado por crianças entre 2 e 8 anos, então haverá uma tarifa para os apartamentos onde moram crianças nessa faixa etária. Quem recebe muitos visitantes ou encomendas demanda mais serviços da portaria, então haverá uma pequena taxa por visita ou por encomenda recebida. Para manter o controle de todas essas tarifas, será cobrada também uma taxa extra para manter uma equipe de apuração e fiscalização do que cada condômino deve.

Se é possível criar tamanha confusão em um ambiente tão simples quanto um condomínio residencial, imagine o que a prática de avaliar pontos específicos, sem levar em consideração o impacto amplo de cada nova regra e o custo da própria complexidade, pode causar em um país. Através de dinâmicas desse tipo é que o Brasil foi criando, ao longo de décadas de evolução desordenada de nossa legislação tributária, uma enormidade de regras específicas e regimes de exceção que transformaram nosso sistema tributário em um dos mais complexos e disfuncionais do mundo.

Dois sintomas ilustram bem o tamanho do problema: uma empresa brasileira gasta, em média, cerca de 1.500 horas para apurar e recolher todos os seus impostos ao longo do ano. Esse tempo é quase 10 vezes maior do que nos 38 países membros da OCDE, onde empresas gastam, em média, 164 horas por ano para o mesmo fim. O outro sintoma é que o valor das contingências tributárias no Brasil (valor disputado entre empresas e os órgãos recolhedores de impostos) equivale a um percentual do PIB cerca de 60 vezes maior do que a média desse mesmo indicador nos países da OCDE, fruto da quantidade de possíveis interpretações distintas existentes na nossa legislação tributária atual.

Os principais pontos problemáticos do sistema tributário brasileiro em vigor são:

Sobre uma mesma base de cálculo, incidem diversos impostos diferentes. Por exemplo, há 5 impostos que podem incidir sobre a receita de uma empresa: IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS. Cada um é regulado por um conjunto de leis diferente, detalhando procedimentos separados de apuração e recolhimento dos impostos. O ICMS, um imposto estadual, pode ter regras diferentes em cada estado e o ISS, municipal, pode variar de acordo com o município em que é cobrado. Com isso, as empresas brasileiras, especialmente as que atuam em vários estados e municípios, precisam considerar um emaranhado de regras para apurar qual é o percentual de seu faturamento que deve ser pago a título de impostos.

Um mesmo imposto pode ter alíquotas diferentes dependendo da categoria do produto ou serviço em questão. Essa prática cria uma complexidade desnecessária relacionada à classificação de um produto de natureza dúbia entre categorias que podem ter impostos bastante diferentes. Há inúmeros litígios multimilionários, originados por estas diferenças de tratamento tributário, em torno de discussões completamente supérfluas, exceto por seu impacto fiscal. Por exemplo, em 2022 duas discussões ficaram famosas: a primeira foi se os calçados Crocs deveriam ser classificados como “calçados domésticos (pantufas)” ou como “outros calçados com sola exterior e parte superior de borracha ou plásticos”, cuja resposta causava uma diferença de algumas dezenas de milhões de reais em impostos de importação; a segunda era sobre o chocolate Sonho de Valsa, que, após uma alteração em sua embalagem, foi reclassificado de “bombom” para “wafer” e passou a ter isenção de IPI (vs 5% para bombons).

Impostos estaduais e municipais são cobrados de acordo com a origem da venda, ou seja, os impostos são pagos para o estado e município em que está localizada a empresa que realizou a venda. Esse sistema tem o mérito de facilitar a apuração de impostos para a empresa, mas gera o problema gravíssimo de guerra fiscal entre estados e municípios. Um exemplo comum de resultado da guerra fiscal são empresas que têm seu principal mercado em São Paulo se mudando para cidades de outros estados (próximas à fronteira) para pagar menos ICMS. Esse tipo de arranjo é claramente improdutivo, pois o a logística sub-ótima aumenta o custo real do produto (antes da incidência de impostos) e esse valor é simplesmente desperdiçado. Ou seja, o governo de um estado incentiva esse custo desnecessário para que seja possível capturar impostos que seriam naturalmente arrecadados pelo estado vizinho.

Há muitos benefícios fiscais em vigor, o que afeta a dinâmica competitiva no país. Como consequência de alíquotas altas e guerras fiscais, há benefícios tão grandes que fazem empresas pouco eficientes se tornarem competitivas no mercado, compensando sua ineficiência com a redução do valor de impostos pagos após aplicação dos benefícios. Assim, em alguns setores a habilidade de negociar benefícios fiscais se torna um fator competitivo mais importante que ser eficiente na atividade principal do negócio. Essa dinâmica tende a eleger os campeões errados, empresários burocratas à frente de negócios pouco eficientes, que prosperam apoiados em incentivos fiscais e leis protecionistas que os defendem de competidores internacionais.

Há inúmeros outros problemas específicos derivados da complexidade legislativa, mas, de um ponto de vista mais amplo, o problema central é o dano causado à eficiência econômica. Além dos desvios provocados na dinâmica de livre mercado, anualmente são dedicadas milhões de horas de empresários, contadores, consultores, fiscais, advogados, juízes etc a questões relacionadas a impostos, que são atividades naturalmente improdutivas. É por isso que uma reforma tributária ampla pode estimular o crescimento econômico do Brasil.

A seguir, vamos falar sobre as atuais propostas de reforma sob discussão hoje.

Proposta de reforma tributária sob discussão

Existem, atualmente, duas PECs sobre reforma tributária: a PEC 45/2019, da Câmara dos Deputados e a PEC 110/2019, do Senado. Apesar de ambas serem recentes, essa reforma é uma pauta bastante antiga. A PEC 110/2019, em particular, foi baseada na PEC 293/2004, elaborada por uma comissão especial há quase duas décadas. Apesar de existirem diferenças entre as duas propostas, ambas compartilham uma base conceitual bastante próxima. Nos concentraremos então nesses aspectos comuns, tendo em vista que as especificidades ainda devem ser alteradas antes da eventual aprovação de uma reforma definitiva.

O objetivo central da reforma é trazer uma simplificação radical para a tributação sobre o consumo. As propostas são baseadas em alguns pilares conceituais:

Unificação dos 5 impostos atualmente incidentes sobre a receita (IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS) em apenas um imposto sobre valor adicionado, que é o modelo de tributação adotado pela maioria dos países do mundo. Aqui, esse imposto seria batizado de IBS (Imposto sobre Operações com Bens e Serviços). Além do IBS, seria criado também o IS (Imposto Seletivo), que incidiria sobre produtos nocivos à saúde ou ao meio ambiente, cujo consumo se desejaria desincentivar.

Manutenção da carga tributária equivalente aos impostos substituídos. As alíquotas do IBS seriam calculadas de modo que o valor total arrecadado seja equivalente ao que seria arrecadado caso os impostos atualmente existentes permanecessem inalterados. Assim, a reforma não se trata de aumento ou redução da carga tributária, apenas de alterações na forma e gestão das cobranças.

Aplicação de alíquotas uniformes para receitas de qualquer natureza, eliminando as discussões sobre classificações de produtos e serviços ou sobre diferentes naturezas das receitas apuradas. Seriam equalizadas, inclusive, as alíquotas cobradas na venda de serviços e de produtos. A PEC 110 permitiria a existência de alíquotas diferentes para algumas classes de produtos, enquanto a PEC 45 sugere a unificação total, mas ambas seguem o princípio de ter alíquotas unificadas como regra geral.

Tributação plurifásica e não cumulativa do IBS. O novo imposto seria aplicado em todas as etapas da cadeia produtiva de forma não cumulativa, ou seja, quaisquer insumos consumidos por um negócio gerariam créditos para abater do valor total IBS incidente sobre a receita da empresa. O IPI e ICMS já funcionam dessa maneira, mas o PIS e COFINS variam de caso a caso e o ISS é cumulativo, o que gera maior tributação se houver mais elos em uma cadeia produtiva que consuma serviços. A vantagem do regime não cumulativo é a maior transparência sobre o valor total do imposto cobrado ao longo das cadeias produtivas. A tributação plurifásica (cobrança em qualquer venda ao invés de apenas na venda para o consumidor final) gera complexidade extra, mas favorece a fiscalização eficiente, por dar maior visibilidade sobre as etapas de cada cadeia e por exigir que duas entidades reportem a mesma informação (a empresa vendedora e a compradora), permitindo verificações cruzadas.

Pagamento dos impostos para o local de destino da venda, ou seja, adota-se o princípio de que se um consumidor da cidade de São Paulo compra algo, os impostos sobre consumo pagos por ele devem ser destinados a fins que o beneficiem e, portanto, recolhidos para o local onde ele próprio vive. Além desse princípio de usar o imposto para beneficiar a população que o pagou, a lógica de tributação pelo destino acaba com a guerra fiscal entre estados e municípios, pois deixa de importar onde está localizada a empresa que realizou a venda.

Redução de benefícios fiscais. A PEC 45 veda qualquer tipo de benefício envolvendo o IBS e a PEC 110 limita à poucas categorias de produtos e serviços. A ideia de ambas é reduzir drasticamente o número de benefícios fiscais existentes no Brasil, tornando a carga tributária mais igualitária entre as empresas.

Mecanismo de restituição do IBS para contribuintes de baixa renda. Para contrabalancear o impacto social da eliminação de benefícios fiscais, que muitas vezes são defendidos como uma forma de reduzir o custo final de produtos essenciais à população de baixa renda, ambas as propostas sugerem um mecanismo de devolução do IBS pago por consumidores de baixa renda. Dessa forma, o subsídio seria mais bem direcionado à população alvo e a questão de impacto social é isolada da discussão de benefícios sociais para empresas ou setores específicos.

Se a reforma é tão boa, por que tanta demora?

Apesar das propostas de reforma serem claras evoluções em relação ao nosso sistema tributário atual e benéficas para o país como um todo, não quer dizer que ela seja benéfica para cada um dos contribuintes, especialmente no curto prazo. Assim, há alguns fatores políticos que dificultam sua aprovação e implementação. Os principais são:

Ao unificar as alíquotas, metade dos contribuintes pagará mais impostos. Como o conceito da reforma é fazer com que todos paguem uma mesma alíquota que mantém a arrecadação total inalterada, os contribuintes que pagavam uma alíquota efetiva acima da média terão sua carga tributária reduzida e os que pagavam uma alíquota efetiva abaixo da média pagarão mais impostos. Ou seja, metade dos contribuintes, ao avaliar o impacto imediato para si próprios, tem incentivos para se posicionar contra a reforma.

A unificação também reduziria a arrecadação de parte dos entes federativos (União, Estados e Municípios), que se juntam à resistência. De maneira análoga ao ponto anterior, ao equalizar alíquotas e mudar o regime de tributação do local de origem para o local de destino, diversos Municípios e Estados teriam perdas de arrecadação. Para mitigar esse problema, as propostas de reformas atuais sugerem regras de distribuição do IBS entre os entes federativos e incluem mecanismos elaborados de restituição das arrecadações para os entes federativos prejudicados, que se manteriam vigentes por longos períodos, para suavizar o impacto da reforma e reduzir resistência política desses entes federativos. De toda maneira, essa discussão aumenta ainda mais a complexidade da aprovação do novo sistema tributário.

A eliminação de benefícios fiscais coloca várias empresas influentes contra a reforma. Via de regra, quem tem mais benefícios fiscais são os grupos econômicos com maior influência política, necessária para conquistá-los. Com isso, a reforma prejudicaria justamente os grupos que têm maior força política para criar resistência à sua implementação.

Em meio a esses conflitos de interesse e já passados 19 anos desde a apresentação da primeira PEC sobre a reforma tributária, até hoje não se chegou a uma proposta com apoio suficiente para ser aprovada no Congresso Nacional.

Como tomar decisões de investimento nesse contexto?

É difícil saber quando uma reforma tributária será implementada no Brasil. A prioridade que o novo governo está dando a essa pauta pode fazer com que, desta vez, ela seja aprovada pelo Congresso no curto prazo, mas, dado que a discussão existe há duas décadas, não é prudente descartar a possibilidade de o tema continuar sem resolução ainda por vários anos.

Apesar da incerteza em torno da aprovação, o formato da reforma está razoavelmente amadurecido, então é plausível adotarmos a premissa de que, se aprovada, a reforma manterá os princípios fundantes das propostas contidas nas PECs 45 e 110. O impacto exato que o novo sistema tributário teria no valuation de cada empresa é difícil de calcular, mas é possível saber se esse impacto seria positivo ou negativo, e ter uma boa noção, em termos relativos, de quais seriam os negócios mais afetados. Em resumo, no cenário em que a reforma é aprovada, há dois fatores que podemos adotar como guias para interpretar o impacto sobre cada empresa:

Empresas que hoje pagam impostos sobre o consumo abaixo da média serão prejudicadas e empresas que pagam impostos acima da média serão beneficiadas. Esse efeito é resultado imediato do princípio de unificar as alíquotas para todos os tipos de receitas. O caso mais claro é que negócios industriais, sujeitos a IPI e ICMS, devem ter suas alíquotas reduzidas e negócios de serviços, sujeitos ao ISS, devem ter suas alíquotas aumentadas.

Benefícios fiscais devem perder valor. Como os benefícios atuais estão relacionados aos 5 impostos existentes no momento, à medida que esses impostos são substituídos pelo IBS, os benefícios perdem valor. Por exemplo, uma isenção de 70% do ICMS devido não terá mais valor quando o ICMS deixar de existir.

Para que esses impactos não sejam tão drásticos, o que poderia causar choques de preços e frustrar investimentos feitos assumindo o regime de tributação em vigor, ambas as propostas preveem períodos de transição (de 6 ou 7 anos, nas minutas mais recentes). No entanto, suavizar o impacto não muda sua direção.

Ao avaliar novas oportunidades de investimento, uma regra prática pode ser: quanto menor for a alíquota efetiva que uma determinada empresa recolhe a título de impostos sobre o consumo, maior é o risco de ela ser negativamente afetada pela reforma tributária. De maneira análoga, quanto maior a alíquota efetiva paga por uma empresa, mais ela pode se beneficiar da reforma.

A complexidade em torno desse tema é um bom exemplo de porque a bolsa brasileira é um ambiente difícil para investidores individuais, que geralmente não podem dedicar o tempo necessário para analisar questões desse tipo que, mesmo sendo bastante extensas, representam apenas uma pequena parcela de tudo que precisa ser avaliado antes de se realizar um investimento com a devida prudência.

Apesar das dificuldades extras geradas nas análises de investimentos, vemos as propostas de reforma tributária com bons olhos. Sua aprovação representaria um tremendo avanço para o sistema tributário brasileiro, que deveria trazer ganhos de produtividade, maior crescimento econômico e, por consequência, maior potencial de valorização para as empresas listadas em bolsa.

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