Chips: o cérebro da economia digital

Caros investidores,

Em abril de 1965, um artigo intitulado “Cramming More Components Onto Electronic Circuits” apareceu na revista Electronics Magazine. Esta publicação, cujo título pode ser compreendido em toda sua magnitude apenas por entusiastas da engenharia, transformou-se em uma das contribuições mais influentes na história.

O artigo havia sido escrito por Gordon Moore, engenheiro eletrônico, então diretor de P&D da empresa Fairchild Semiconductor, um dos futuros fundadores da Intel. Em seu artigo, Moore previa que o número de transistors em um circuito integrado iria dobrar em média a cada dois anos. Essa previsão acabou se tornando conhecida como a Lei de Moore.

A previsão foi originalmente feita para os 10 anos seguintes, mas ela se prova verdadeira até hoje, quase 60 anos depois. E é graças a ela que o número de transistors que cabem em um chip saiu de 4 para mais de 16 bilhões hoje¹ e possibilitou que essa tecnologia ficasse cada vez mais predominante em nossas vidas. No centro do universo digital, os chips, ou microprocessadores, são os cérebros por trás dos computadores, smartphones, tablets e de uma infinidade de dispositivos eletrônicos que formam a base da economia digital. Sem eles, muitos dos avanços que vemos em campos como inteligência artificial, Big Data, Internet das Coisas (IoT) e computação em nuvem, por exemplo, não seriam possíveis.

A demanda por chips está crescendo em uma variedade de setores, desde a automobilística à saúde, passando pela agricultura e até mesmo a exploração espacial. A escassez de chips pode ter efeitos dramáticos na produção e na economia como um todo, efeito que ficou evidente durante a pandemia, quando a escassez de chips teve um impacto significativo na indústria automobilística. Um veículo moderno possui, em média, 1.500 chips. Sem eles, muitos veículos deixaram de ser produzidos, o que se estima que tenha levado a indústria a perder até ~USD 200 bilhões em vendas nos últimos anos. Esse impacto é igualmente notável no forte aumento de preços de carros que testemunhamos no mesmo período.

Considerando que a tecnologia dessa indústria é detida por pouquíssimas empresas, cada uma especializada em uma etapa da cadeia produtiva, novos gargalos não são impensáveis e podem ser muito mais severos que os enfrentados durante a pandemia – especialmente considerando que a empresa responsável pela produção de quase 90% dos chips mais avançados do mundo² (TSMC) está localizada em Taiwan.

Nos próximos parágrafos, explicamos brevemente a história da indústria, como ela está configurada hoje e seu papel no cenário geopolítico global e implicações para os nossos investimentos. Para quem tiver interesse em se aprofundar no assunto, recomendamos a leitura do livro Chip War, do autor Chris Miller.

O que exatamente é um chip

Para entender como um chip funciona, é útil começar com o conceito de um semicondutor.

Os semicondutores são materiais com propriedades elétricas que ficam entre as dos condutores (como o cobre, que conduz a eletricidade muito bem) e dos isolantes (como a borracha, que não conduz a eletricidade). O silício é o semicondutor mais comumente usado na fabricação de chips – foi a partir desse elemento que a região dos EUA chamada de Silicon Valley foi nomeada.

Nos chips, pequenos componentes chamados transistores são criados a partir desse semicondutor. Imagine o transistor como uma pequena chave que pode ligar e desligar a eletricidade. Esta capacidade de controlar a eletricidade é crucial para o funcionamento do chip, pois é assim que a linguagem binária (código de 1s e 0s) é representada. Quando o transistor está “ligado”, registra-se um “1” e quando está “desligado”, registra-se um “0”. Esta série de 1s e 0s é a linguagem fundamental que os computadores usam para processar informações.

Breve histórico da indústria de chips

A indústria de semicondutores tem suas raízes no século 20, quando a invenção do transistor na Bell Labs em 1947 mudou o curso da tecnologia. Este pequeno dispositivo, que poderia amplificar e comutar sinais elétricos, eventualmente substituiu a válvula de vácuo, que era maior, consumia mais energia e era menos confiável. Em 1958, Jack Kilby da Texas Instruments e Robert Noyce da Fairchild Semiconductor, de forma independente, criaram o primeiro circuito integrado (ou chip), que combinava vários transistores em um único dispositivo. Esta invenção marcou o início da era do silício e o nascimento da indústria de chips.

Nos anos iniciais, os produtos não tinham demanda comercial e encontraram uso em aplicações militares. O fato de os EUA estarem ficando para trás na corrida espacial forneceu o incentivo necessário para a demanda por computação. A Fairchilld Semiconductor recebeu um grande pedido da NASA para a missão Apollo (missão que levou o homem para a lua em 1969). Enquanto isso, a Texas Instruments recebeu um grande pedido da Força Aérea Americana para um sistema de orientação de mísseis.

Na década de 1970, empresas como a Intel e a AMD emergiram como players importantes no setor, com a Intel introduzindo o primeiro microprocessador comercialmente disponível, o Intel 4004, em 1971. A invenção do microprocessador levou a avanços significativos na computação e em outras tecnologias, alimentando a ascensão dos computadores pessoais na década de 1980.

A partir da década de 1980 e continuando até o século 21, a indústria de semicondutores expandiu-se além dos computadores para incluir uma gama cada vez maior de aplicações, incluindo telefones celulares, dispositivos de Internet das Coisas (IoT) e sistemas de inteligência artificial. Além disso, surgiu uma divisão global do trabalho, com algumas empresas, como a Intel, projetando e fabricando seus próprios chips, enquanto outras, como a Apple e a Qualcomm, projetando chips, mas terceirizando a fabricação para empresas como a TSMC.

Panorama atual da indústria

Considerando a importância da indústria, chega a ser surpreendente quão concentrada ela é.

Empresas como Apple, Nvidia e AMD tem papel importante, mas são responsáveis apenas por projetar o chip. Para desenvolver esse projeto, essas empresas dependem de softwares cuja tecnologia é dominada por apenas 4 empresas (3 americanas e 1 alemã) que, em conjunto, detém 90% do mercado global: Synopsis, Cadence, Ansys e Siemens.

Quando o projeto é concluído, ele é enviado para uma das fabricantes de chip. Dependendo da complexidade do produto, há apenas 2 ou 3 empresas no mundo capazes de produzi-los: TSMC (Taiwan), Samsung (Coréia do Sul) e Intel (EUA)³. Para chips com tecnologia inferior, outras empresas passam a atuar, como a americana Global Foundries (antigo spin-off da AMD), a também taiwanesa UMC e a chinesa SMIC. Chama a atenção a dominância que a TSMC exerce nesse mercado – para os chips mais avançados, com nodos inferiores a 10 nm, ela possui 90% de market share. E mesmo para os nodos inferiores, a empresa tem posição dominante, com market share superior a 50%. Detalhes no gráfico abaixo.

Gráfico 1 – Market share de fabricantes de chips não-integrados por nodo, dados de 2020

Fonte: Bain/IC Insights/Gartner

Obs.: No gráfico, as barras da direita representam os chips mais avançados (com menor distância entre os elementos)

Empresas como Apple e Nvidia acabaram ficando mais famosas, a primeira por ser a mais valiosa do mundo, e a segunda por ser a mais bem preparada para surfar a onda de AI (o que fez suas ações saltarem incríveis 175% em 2023), mas ambas são extremamente dependentes da TSMC – 100% dos chips de ambas são fabricados pela empresa taiwanesa.

A TSMC consegue desenhar o projeto de seus clientes em silício utilizando algumas das máquinas mais precisas do mundo, que gravam, depositam e medem camadas de materiais em dimensão de nanômetros (20.000 vezes menor que um fio de cabelo). Essas máquinas são produzidas principalmente por 5 empresas: uma holandesa (ASML), uma japonesa (Tokyo Electron), e três americanas (Applied Materials, Lam Research e KLA), cada uma focada em uma etapa do processo.

A ASML em especial (a maior empresa da Holanda em market cap) é a única detentora da tecnologia de litografia EUV4, que é essencial para projetar o design do chip nas camadas de silício. Cada uma dessas máquinas tem um custo médio de USD 150 milhões (são poucas as empresas capazes de fazer tal investimento – apenas TSMC, Samsung, Intel e fabricantes de chip de memória como SK Hynix e Micron), e é produto de um investimento de 3 décadas pela ASML. Hoje, a empresa colhe os benefícios, dado que ele é essencial para a produção dos chips mais avançados e não há substitutos – menciona-se que a ASML está livre de concorrentes para essa tecnologia por algumas décadas.

E como viemos parar nessa situação? Em que uma indústria tão importante é dominada por tão poucas empresas?

Em toda a indústria de chips, as últimas décadas trazem histórias de consolidação. E há duas razões para isso: a primeira é que várias partes do processo de fabricação de chips são brutalmente intensivas em capital, com máquinas muito caras. Isso desincentiva a competição, pois um novo entrante precisa investir bilhões de dólares antes de saber se seu produto sequer funcionará.

A segunda é que o nível de conhecimento necessário para fabricar esses equipamentos é muito específico e requer experiência prática, não é algo que pode ser ensinado de forma teórica nas faculdades. Isso significa que as empresas detentoras das tecnologias possuem em seu quadro de funcionários a grande maioria das pessoas do mundo com o conhecimento necessário, e torna muito difícil o surgimento de um novo entrante na indústria.

Dilema geopolítico

A importância dos chips vai além de aspectos econômicos, eles também têm desempenhado um papel fundamental em aplicações militares, contribuindo para o avanço tecnológico em áreas como comunicações, vigilância, inteligência e armamentos. Durante a Guerra Fria, por exemplo, o pioneirismo dos EUA na utilização dessa tecnologia foi um fator decisivo para eles saírem vencedores em relação a União Soviética.

No mundo atual, os chips têm papel ainda mais relevante, especialmente dado que os sistemas militares e de inteligência serão cada vez mais dependentes de inteligência artificial. Sistemas de AI são treinados em data centers cheios de chips sofisticados. Se um país não detém a tecnologia para fabricar tais chips, ele não será capaz de treinar os sistemas de AI. E é nisso que os EUA apostam em seu conflito com a China.

Nesse contexto, os EUA têm adotado medidas para restringir o acesso da China a tecnologias de semicondutores avançadas. Por exemplo, várias empresas chinesas foram colocadas em uma lista do Departamento de Comércio dos EUA com restrições para comprar tecnologia de semicondutores dos EUA. Ao mesmo tempo, empresas americanas e de países aliados (como ASML, Tokyo Electron, Applied Materials, Lam Research, KLA e até a TSMC) estão com uma série de restrições que as impedem de comercializar seus produtos mais avançados para a China.

Em resposta, a China tem investido fortemente no desenvolvimento de sua própria capacidade de produção de semicondutores, embora ainda haja um longo caminho a percorrer para atingir o nível de tecnologia dos principais fabricantes de chips.

Além disso, há ainda a questão de Taiwan. A China tem reivindicado Taiwan como parte de seu território, o que tem sido uma fonte contínua de tensões entre a China, Taiwan e os EUA, que são um importante apoiador de Taiwan. Qualquer conflito em Taiwan ou tentativa da China de exercer controle mais direto sobre a região teria implicações significativas para a TSMC e, consequentemente, para a cadeia de fornecimento global de semicondutores.

Para se proteger de uma eventual escalada do conflito em Taiwan, os EUA aprovaram em 2022 o Chips Act. A lei estabelece a destinação de USD 280 Bi para investimentos em pesquisa e fabricação de chips nos EUA, e tem o objetivo de reduzir a dependência americana dos chips fabricados no leste asiático, especialmente os mais avançados. A passagem da lei já atraiu investimentos de empresas como Intel, Global Foundries, Samsung e até a TSMC – todas pretendem construir fábricas nos EUA nos próximos anos. Apesar do cheque vultuoso, há muitos que são céticos quanto aos impactos que esses investimentos realmente terão na mudança na estrutura global de produção, dado que cada fábrica é incrivelmente cara (uma fábrica de tecnologia de ponta custa entre USD 20-25 Bi para ser construída, e ela só tem tecnologia de ponta por alguns anos), e o fato de a produção nos EUA ser naturalmente mais cara que em Taiwan, especialmente devido a custos mais altos em recursos importantes como pessoal, terra água e eletricidade, uma legislação ambiental mais rígida, e um regime tributário mais severo.

O desenrolar de toda essa dinâmica é algo para ser monitorado de perto nos próximos anos.

Impacto nos investimentos

Sob o ponto de vista dos investimentos, há duas formas de pensarmos em como agir.

A primeira é identificar potenciais oportunidades na própria indústria, uma vez que ela certamente possui características bastante atrativas: é um produto essencial para a economia global, com claras tendências de crescimento e repleto de empresas dominantes em seus respectivos segmentos. Dadas essas características, nós analisamos as empresas e estamos acompanhando os preços das ações, a fim de potencialmente investir em um momento de preços adequados.

Uma empresa que, em particular, chama a atenção é a TSMC. Como vimos, ela tem posicionamento competitivo dominante e, analisando seu histórico de crescimento e rentabilidade (ela cresce a um ritmo de 22% ao ano nos últimos 30 anos, com um ROE consistentemente na casa dos 20-30%), seria de se esperar que ela negociasse a múltiplos elevados. No entanto, ela é atualmente avaliada em USD 465 Bi5 e negocia a um múltiplo de 14x o lucro dos últimos 12 meses – baixo considerando a qualidade da empresa. No entanto, a sua presença em Taiwan coloca a empresa em uma posição de fragilidade dado a constante ameaça de invasão chinesa, o que pode representar uma ameaça ao investimento na TSMC. O megainvestidor Warren Buffett investia na empresa, mas vendeu suas ações no início de 2023. Quando perguntado sobre o motivo, Buffett respondeu que considera a TSMC uma das empresas mais bem geridas do mundo, mas não gosta da localização da empresa.

A segunda forma é pensar em impactos de segunda ordem, especialmente em como a evolução da dinâmica dessa indústria pode impactar a economia global. Um grande ponto de preocupação é uma eventual guerra ou bloqueio em Taiwan, que poderia ter impactos perto de catastróficos para a economia global. Se a escassez de chips vista durante a pandemia serve de amostra, é provável que ficaríamos 1 ou 2 anos sem trocar de carro, e o mesmo nível de disrupção seria visto em diversas outras indústrias como celulares, computadores e eletrodomésticos.

Além de buscar novas oportunidades de investimento nessa indústria, também estamos atentos aos impactos que mudanças na cadeia de semicondutores podem ter para as empresas que temos em portfólio. Dada a importância do tema para a economia global, continuaremos o acompanhando de perto nos próximos anos.

Dia 06/06 faremos uma live via Youtube comentando sobre a carta desse mês. Inscreva-se clicando aqui.

¹ Número de transistores do Apple A16, microprocessador do iPhone 14 Pro

² Dados de 2020 mostram que a TSMC possui um market share de 90% nos chips com nodos menores que 10 nm

³ A Intel é a única empresa que ainda projeta e fabrica seus próprios chips. Dado seu foco duplo, ela acabou perdendo a corrida com os fabricantes puros (especialmente a TSMC), e conseguiu lançar os produtos de tecnologia mais avançada somente vários anos após as concorrentes

4 Extreme ultraviolet lithography

5 Considerando os preços de fechamento de 02/06/2023

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