Caros investidores,
Temos acompanhado o caso das bets no Brasil, sites de apostas esportivas que viraram febre e alcançaram proporções surpreendentes. Em agosto deste ano, segundo levantamento do BACEN, foram gastos R$ 21 bilhões com as bets, considerando apenas os pagamentos feitos por PIX. Deste valor, R$ 3 bilhões foram gastos por beneficiários do bolsa família, causando uma onda de críticas à atividade, que leva a prejuízos um segmento da população já financeiramente fragilizado.
Seguindo a máxima de que a história não se repete, mas rima, essa é só mais uma versão de um problema antigo e bem conhecido pela humanidade. Várias nações já enfrentaram épocas em que apostas se tornaram moda e causaram problemas profundos. Por trás de cada história está algo difícil de mudar: a propensão humana ao vício em apostas. Não é um fenômeno psicológico simples. Apesar da solução racional ser óbvia: simplesmente não apostar, é difícil encontrar um jeito prático de impedir que as pessoas apostem.
Os impulsos que levam às apostas esportivas são velhos conhecidos também no mundo dos investimentos. Há pessoas que enxergam o mal das bets e com clareza, mas, ao mesmo tempo, agem de forma imprudente no mercado de ações. Como um jogador de roleta que condena o hábito do jogador de dados, sem notar que seu próprio vício é muito similar.
Para não ser mais uma vítima, o que se pode fazer é buscar entender a psicologia relacionada ao vício em apostas e realizar uma autoanálise sincera, em busca de possíveis comportamentos nocivos em si próprio. Identificar um problema é o primeiro passo para conseguir resolvê-lo. Esse será nosso assunto.
Panorama histórico
Na Roma antiga, apostas em jogos de dados, lutas entre gladiadores, corridas de bigas, arremessos de dardos e outros esportes eram práticas bastante populares. Há indícios de diversas tentativas de controle por vias legais, através de sanções para donos de estabelecimentos de apostas, imposição de multas aos praticantes e proibição plena para militares e oficiais do governo.
Durante as dinastias chinesas Ming e Qing (séc. 14 a 20), jogos de azar eram muito comuns. Loterias, jogos de cartas, jogos de dados, mahjong, apostas em corridas e brigas de animais. O governo Ming chegou a aplicar a proibição total de jogos de azar, impondo penas severas: multas, prisão e castigos físicos para os apostadores e operadores de estabelecimentos de apostas. Mesmo assim, a atividade continuou popular por séculos.
Na Inglaterra do século 16 a 19, loterias, jogos de cartas e apostas em corridas de cavalos se tornaram comuns tanto entre a aristocracia quanto entre a população em geral. Em 1845, uma nova lei chamada Gambling Act tentou suprimir essas atividades. Casas de jogos se tornaram proibidas, foram criadas proteções para indivíduos vulneráveis, como menores de idade, e dívidas originadas em jogos de azar se tornaram não executáveis através do sistema judicial inglês. A lei teve alguns resultados positivos, mas também alguns efeitos colaterais. Por exemplo, na impossibilidade de cobrar dívidas de jogos legalmente, os métodos de cobrança alternativos se tornaram mais frequentes.
Esses exemplos históricos tornam dois pontos bastante claros. O primeiro é que jogos de azar são nocivos à sociedade, pois levam muitos indivíduos a ruína financeira, desestabilizam famílias e incentivam atividades criminosas. Não à toa, governos de diferentes épocas e culturas tentaram suprimir a prática em suas populações. O segundo ponto é que as tentativas de supressão regulatória não foram eficazes mesmo impondo penas duras. O problema é crônico, como o uso de drogas.
Com esse contexto histórico, é difícil de imaginar que o Brasil escapará facilmente das más consequências das bets. Nos parece que algo assim só poderia ser mitigado através do conceito confucionista de que, para trazer ordem ao mundo, você deve começar cultivando a virtude em si mesmo, depois ordenar sua vida familiar, depois contribuir para sua comunidade e assim ir expandindo a ordem para círculos cada vez mais amplos. É uma rota longa e que dificilmente receberá atenção relevante do governo.
Apesar do prognóstico pessimista, publicar esse texto é a contribuição que está ao nosso alcance.
A psicologia por trás do jogo
O primeiro passo é entender de onde vem a propensão ao vício em jogos de azar. Uma série de fatores psicológicos interagem entre si para criar esse vínculo com esquemas de apostas. O início costuma ser despretensioso, motivado por curiosidade e busca de diversão. Pela adrenalina de apostar e torcer pelo resultado desejado. Pelo prazer de imaginar o que poderia ser feito com o dinheiro do prêmio. Quando começam as apostas, surgem as armadilhas.
Uma delas é que a mente humana tende a buscar padrões em eventos históricos, sem o cuidado de verificar se são estatisticamente relevantes ou apenas acidentes aleatórios que causam a aparência de ordem, similares à possibilidade de enxergar uma nuvem em formato de elefante. Isso leva apostadores a teorizar sobre métodos de prever resultados e criar uma ilusão de controle sobre o que continua sendo puramente aleatório. Às vezes, esse comportamento é claramente supersticioso, como aquela pessoa que aparece nos jogos da copa com uma camiseta estranha e diz que o Brasil sempre ganha quando assiste o jogo com ela. Nos casos mais perigosos, se desenvolve uma espécie de pseudociência, com métodos elaborados, estratégias e “análises técnicas” que dão a aparência de algo sério, mas são baseados em premissas falsas e, por consequência, não funcionam. Em mercado financeiro, métodos de day trade são um exemplo claro desse último caso.
Outro viés perverso é a memória seletiva atuando sobre os palpites passados, incluindo situações em que nenhuma aposta foi feita. As pessoas se lembram muito melhor de seus acertos do que de seus erros e, assim, criam uma ilusão de habilidade baseada nessa preponderância de memórias positivas. Nas bets, é a recordação de quando acertou 3 vezes seguidas o resultado de jogos de futebol. Na bolsa, é o caso de quem pensa casualmente em investir em uma ação, mas não o faz. Meses depois, vê que a ação subiu muito e conclui que só faltou agir sobre seu “conhecimento” para ganhar um enorme retorno. Se sente tolo de não ter confiado em sua própria habilidade e planeja investir da próxima ver que “enxergar uma oportunidade”.
Há também os quase-acertos. Nas bets, é o jogo que terminou 3×1 e não no 2×1 da aposta. Na bolsa, é aquela ação mantida por tanto tempo e vendida só um mês antes de subir 20%. Em retrospectiva, tudo parece mais óbvio e surge a impressão de que o método usado está no caminho certo. Com poucos aperfeiçoamentos, deve funcionar bem.
A experiências de ganhar diversas vezes também motiva a continuar jogando. Mesmo com o retorno médio negativo que é comum aos jogos de azar e aos investimentos especulativos, essa média é composta por vários eventos de ganho em meio às numerosas perdas. Olhando para trás e analisando o resultado obtido até então o quadro deveria se tornar claro, mas é difícil agir com frieza. Quando se está ganhando, a vontade é de continuar para ganhar mais. Quando se está perdendo, a vontade é de continuar para recuperar o que foi perdido antes de parar. O impulso de continuar jogando nunca acaba.
Até os casos de sucesso que inspiram os novatos são como o mítico canto das sereias, que atraía os marinheiros para a morte no mar. As histórias de pessoas que enriqueceram rapidamente e sem esforço investindo em ações são reais, assim como o caso do jogador de poker que saiu com um royal straight flush (sequência de cartas altas do mesmo naipe). Ambos são eventos possíveis, mas raríssimos. Como os vencedores contam suas histórias muito mais vezes do que os perdedores, muito mais histórias de sucesso do que de fracasso são ouvidas e fica a impressão de que a chance de sucesso é maior do que ela realmente é.
A propensão de cada um a cair nessas armadilhas depende de sua personalidade, valores fundantes e situação de vida. Aqueles que já têm uma propensão ao vício em apostas, não se importam tanto com autodisciplina e se encontram em uma situação fragilizada têm uma grande chance de serem seduzidos pela possibilidade dos ganhos rápidos através de apostas. Uma vez que se comece, muitos têm dificuldade de parar.
Investidores vs. apostadores
Bolsas de valores e casas de apostas são ambientes bem diferentes, mas alguns comportamentos se manifestam em ambos os lugares. No mercado de ações, há dois perfis de investidores bem distintos. Um é a pessoa que analisa em profundidade cada oportunidade e toma suas decisões de maneira racional e fundamentada. Outro é a pessoa que compra ações com base em instintos ou palpites, sem muitas pretensões de conhecer bem o negócio que está comprando. Para o primeiro perfil, investir não é um jogo de azar. Para o segundo, é um jogo talvez até pior que os de cassinos. Em um jogo de roleta, a chance de ganhar é cerca de 5% menor que a de perder. Na bolsa, os desavisados negociam contra vários investidores profissionais, competentes e diligentes.
Essa representação mostra os dois extremos, mas há um amplo espectro de possibilidades entre o investidor perfeitamente diligente e o totalmente irresponsável. Poucos enxergam a própria atuação como a de um especulador e é relativamente comum ver pessoas agindo de maneiras arriscadas sem ter plena consciência do risco. Algumas verificações simples podem ajudar a identificar potenciais problemas.
A pergunta fundamental que se quer responder ao avaliar uma ação é se seu preço está acima ou abaixo do valor justo para o negócio. Por consequência, é necessário estimar qual é esse valor justo. Essa tarefa envolve uma série de incertezas e mesmo investidores experientes podem errar na avaliação, mas todos eles conhecem o método do fluxo de caixa descontado, que é a matemática fundamental por trás da precificação de ativos financeiros em geral. Quem se basear apenas no histórico de preços da ação e na lógica simplificada de múltiplos de valuation estará em clara desvantagem no mercado.
Também é essencial manter um histórico fidedigno de todos os investimentos feitos, incluindo os custos de transação, e calcular o retorno consolidado do portfólio. Idealmente, em longos períodos. Esse é o único jeito de avaliar o sucesso ou fracasso dos investimentos. Apesar de óbvio, é bastante comum ver investidores independentes que avaliam suas aplicações caso a caso, sem consolidar os retornos. Guardam boas memórias dos ganhos e buscam esquecer as perdas, sem nunca saber se o tempo que gastam com os investimentos é um trabalho rentável ou um entretenimento custoso.
Quem se encontrar, com frequência, na posição de estar segurando uma ação só até que ela volte ao preço que comprou, para recuperar o prejuízo, ou de vender ações após uma pequena alta, para garantir os ganhos, deveria refletir se realmente está agindo de maneira racional e fundamentada. Segurar o que está caindo e vender o que está subindo é um viés cognitivo clássico e bastante similar ao comportamento de apostadores em jogos de azar, que tomam mais riscos para tentar recuperar perdas do que em busca de ganhos adicionais.
Uma última recomendação é a pura e simples honestidade intelectual ao responder à pergunta de se os próprios investimentos estão sendo feitos de forma responsável ou se são baseados em palpites e instintos. Há um mito de que os grandes investidores são aqueles que têm instintos apurados e agem por impulso nos momentos corretos, capturando grandes ganhos em períodos curtos. A realidade é bem menos emocionante que isso. Os instintos mais atrapalham do que ajudam e há uma grande quantidade de trabalho analítico envolvida em cada decisão.
Mesmo investindo de maneira responsável, não há garantia de sucesso, pois lembre-se que o mercado de ações é um ambiente competitivo. Não basta estar certo, é necessário estar mais certo que a média dos outros participantes para ter um retorno superior. A importância de ser diligente e tecnicamente bem embasado se deve ao fato de que o estilo alternativo, investir com a atitude de um apostador, muito provavelmente garantirá o fracasso.
As consequências das apostas em bolsa
Levar o espírito dos jogos de azar para os investimentos em bolsa provoca os mesmos males. Investimentos irresponsável também podem levar à ruína financeira e à desestabilização de famílias. Não se ouve falar muito disso porque os casos trágicos são pouco representativos comparados a todo o volume de capital negociado no mercado e porque a bolsa tem uma função real na economia, de permitir que empresas tenham acesso a capital e fornecer liquidez a investidores. Além disso, os investimentos em bolsa são menos acessíveis. Enquanto as bets permitem apostas a partir de R$ 1, um lote padrão de ações da Petrobras custa, hoje, cerca de R$ 3,6 mil. Ou seja, perder dinheiro em bolsa é um problema para a classe média e alta, menos passíveis de serem rotuladas como vítimas em noticiários. Mas basta conversar com um assessor de investimento sincero para ver que casos assim são relativamente comuns.
Há também um paralelo entre os operadores de casas de apostas, que se aproveitam dos que têm propensão ao vício nos jogos, e alguns agentes do mercado financeiro, que têm o mesmo comportamento predatório de explorar pessoas leigas. Os mecanismos de exploração vão desde os óbvios esquemas de pirâmide que, mesmo já ilegais e bem conhecidos, sempre conseguem atrair uma porção de desavisados com promessas de retornos altos e garantidos; até casos mais sofisticados, e perfeitamente legais, de produtos de investimento criados por instituições financeiras e vendidos para seus clientes sem total transparência sobre os riscos. O cliente costuma até assinar um termo dizendo que está ciente de todas as características do produto, o que isenta as instituições financeiras de possíveis problemas, mas quase ninguém lê os longos e enfadonhos contratos. Apenas os casos mais extremos aparecem na mídia, ocasionalmente, e são esquecidos em pouco tempo. O alerta que deixamos é que cada um assuma integralmente a responsabilidade de proteger seu próprio patrimônio.
Para o país, tratar o mercado de renda variável como um grande cassino também não é benéfico. Investidores interagem com a economia real por duas vias principais. A primeira é através de ofertas primárias (IPO e follow-on), processos que fornecem capital novo a empresas. Investir nessas ofertas sem a devida análise resulta em más alocações de capital e o consequente desperdício dos recursos existentes no país em atividades econômicas pouco rentáveis. A segunda é através da influência que investidores exercem sobre os executivos das empresas listadas, que buscam agradar o mercado na esperança de contribuir para a alta de preço de suas ações. Em ambos os casos, a responsabilidade direta é muito menos de investidores individuais do que de gestores profissionais, que movimentam grandes volumes de capital. Porém, gestores reagem ao desejo de seus clientes. Se cobram retornos rápidos, as estratégias se tornam curto-prazistas e muito mais sujeitas às intempéries do acaso.
Enquanto esse tipo de comportamento se torna cada vez mais comum no mercado, temos o privilégio de contar com clientes bastante diferenciados, que mantêm o foco no longo prazo e grande alinhamento filosófico com nossa abordagem fundamentalista. Isso nos permite executar uma gestão muito mais racional e ponderada, que vem gerando ótimos retornos para nossos investidores há mais de uma década.
Confiram os comentários de Ivan Barboza, gestor do Ártica Long Term FIA, sobre a carta desse mês no YouTube ou no Spotify.