A era da prova social

Caros investidores,

É difícil observar os movimentos da bolsa de valores sem ficar intrigado. Em um momento, predomina a opinião de que o futuro é sombrio e, logo depois, um sentimento de otimismo contamina os mercados e gera um novo ciclo de alta. As vezes, nenhum fato de grande relevância acontece durante essa inversão de sentimentos. Não é por acaso que uma das mais famosas representações do mercado é o alegórico Mr. Market, de Benjamin Graham, uma figura emotiva que, em seus surtos bipolares, pode abandonar completamente a racionalidade costumeira e agir de maneiras incompreensíveis para um observador externo.

No entanto, essa percepção conflita com o fato de que o mercado de investimentos é constituído por profissionais talentosos e altamente qualificados, selecionados através de dinâmicas extremamente competitivas. Como pode este grupo de pessoas seletas agir de maneira emotiva e irracional? É concebível que alguns investidores isolados cometam erros. Porém a média das opiniões de todos, que em última instância fazem o preço no mercado, não deveria refletir a melhor previsão do futuro que é possível alcançarmos?

Esta visão, que argumenta pela sabedoria e competência do coletivo de investidores, é a famosa teoria dos mercados eficientes, que tanto gostamos de criticar. Como podemos rotular como eficiente um mercado que reduziu sua visão de valor para algumas empresas em mais de 80% em um espaço de um ano, atribuindo o ajuste principalmente a fatores macroeconômicos? Enxergamos apenas dois tipos de fatores que poderiam causar esse nível de ajustes: ou uma catástrofe macroeconômica da ordem de grandeza de uma guerra nuclear ou um grande erro na avaliação de valor destas empresas…

Críticas à parte, resta a questão de como esse coletivo de investidores, de fato constituído por pessoas inteligentes e bastante instruídas, pode cometer erros dessa ordem de grandeza. É de suma importância entender a fonte dessas distorções, para que seja possível evitar fazer parte desses erros coletivos. Esse será nosso tema.

Os suspeitos usuais

Em seu famoso livro “Thinking Fast and Slow”, Daniel Kahneman, ganhador do prêmio Nobel de economia, descreve a existência de dois sistemas de raciocínio que coexistem em cada cérebro humano: o sistema 1 é rápido e heurístico, responsável pelo que chamamos de intuição, enquanto o sistema 2 é lento e metódico, responsável pelo que entendemos como a racionalidade clássica. A ordenação entre eles não é arbitrária. A resposta que nos vem à mente primeiro é sempre do sistema 1, equanto o papel do sistema 2 é suprimir o sistema 1 e chegar a conclusões mais precisas sobre o tema de interesse, quando há tempo disponível e decidimos ativamente empregar esforços para isso.

As respostas rápidas do sistema 1 são uteis em diversas situações de estresse. Ao ver um carro desgovernado vindo em sua direção, é mais eficiente se esconder atrás de um poste do que ficar parado analisando a trajetória do carro para julgar se ele realmente vai te atropelar. Porém, o sistema 1 introduz uma série de erros crônicos de raciocínio que são chamados de vieses cognitivos. Já falamos sobre isso em nossa carta de abril de 2022, mas retomaremos ao assunto para aprofundar algumas considerações.

Erros coletivos

Praticamente todos os testes formais de habilidade intelectual são focados no sistema 2. Assim, quando dizemos que o público de investidores é integrado por pessoas inteligentes e bem instruídas, estamos tecendo elogios aos seus sistemas 2. Sem dúvida essas são grandes qualidades, mas não tornam esse público isento dos vieses cognitivos impostos pelo sistema 1. Entre as dezenas de vieses existentes, alguns são particularmente perigosos por serem “altamente escaláveis” e potencializados em contextos em que há um grande número de pessoas interagindo entre si, o que os torna potenciais fontes de erros coletivos. É o caso do viés de prova social, em que um indivíduo tende a imitar o comportamento que enxerga em outras pessoas ao seu redor.

Para ilustrar o que um viés pode causar, trazemos uma curiosidade mencionada por Charlie Munger em sua brilhante palestra intitulada “Psychology of Human Misjudgment”: formigas são condicionadas a marchar logo atrás de qualquer outra formiga que esteja andando a sua frente, comportamento responsável pela formação das longas fileiras de formigas que todos nós já observamos em algum momento. Na maioria dos casos, o comportamento é eficiente para coordenar o trabalho conjunto da colônia, mas quando uma trilha dessas por acaso se torna um grande círculo, as formigas continuam sujeitas ao seu instinto de seguir a formiga da frente e podem continuar marchando em círculos até a morte.

Esse é um exemplo de prova social bastante simplificado. Nossos cérebros humanos jamais cairiam em uma armadilha tão simples, mas estamos longe de sermos imunes. Em um experimento para testar esse viés, figurantes entram em um elevador em que o alvo do teste está sozinho e se posicionam todos de costas para a porta. Logo, o alvo do teste vira de costas para a porta também, apesar de ser tão pouco natural e não fazer sentido algum (busque por “social proof elevator” no Youtube para ver vídeos do experimento). Em um exemplo mais grave e complexo, muitos atribuem ao viés de prova social a aderência de grande parte da população alemã ao nazismo (o filme “The Wave”, de 1981, aborda o tema).

Vejamos agora como esse viés age sobre o mercado de investimentos.

A armadilha da prova social

Uma das características do viés de prova social é que ele se intensifica em situações de incerteza e stress. Sem uma análise racional para determinar como devemos agir e sob pressão, é instintivo buscar conselhos das pessoas que transmitam maior confiança ou simplesmente copiar o que estiverem fazendo. Esse instinto não é injustificado. Na maioria dos casos, quem age com tranquilidade e confiança realmente sabe o que está fazendo. O problema é que este critério julga apenas a aparência, e não qualidade da recomendação. Um exemplo disso são  alguns “gurus do mercado financeiro” que tem mais autoconfiança do que habilidade ou que, em alguns casos, dão conselhos mal-intencionados em busca de benefícios próprios.

Quando se fala de análise de investimentos, o problema é agravado, pois há dois tipos de incertezas envolvidas: as incertezas epistêmicas, que poderiam ser eliminadas com mais informações e esforços analíticos (ao menos em tese, pois é comum a informação necessária não ser acessível), e as incertezas aleatórias, relacionadas a parâmetros completamente imprevisíveis e que, portanto, não podem ser eliminadas. O bom investidor reconhece que essa parcela intratável de incertezas existe, o que impossibilita ter confiança absoluta sobre qualquer tese de investimento. Assim, o discurso de investidores hábeis tende a ser ponderado e reflexivo.

Porém, há sempre quem esteja disposto a discursar publicamente sobre temas incertos com extrema confiança e assertividade, seja por falta de consciência sobre as incertezas envolvidas ou por saberem que esse tipo de discurso é mais eficiente para sua autopromoção do que o estilo mais ponderado. Em ambos os casos, a imagem de certeza é falseada. Porém, mesmo falseada, essa imagem atrai os que buscam orientação para decidir o que fazer em uma situação de incerteza e stress. Assim se iniciam os ciclos viciosos que conduzem a erros coletivos.

O círculo de formigas

Quando há muitas incertezas no cenário macroeconômico, político ou no contexto em que determinada empresa está inserida, seria adequado que os investidores se mantivessem em um estado de dúvida. Porém, esse estado é profundamente desagradável para a mente humana. Eliminá-lo a qualquer custo é, inclusive, outro viés cognitivo que induz a realizar simplificações inadequadas de análises, adotar premissas sem base razoável e ignorar pontos falhos no raciocínio. Tudo isso para chegar a uma conclusão, mesmo que forçada, que permita sair do estado de dúvida.

Agora imagine que essa dedução forçada é levada ao público por um orador autoconfiante, sendo indiferente se ele acredita no próprio discurso ou se é um sofista. Aos ouvintes, que já buscam um meio de abandonar seu próprio estado de dúvida, o discurso conclusivo se soma à prova social de enxergar alguém defendendo o ponto publicamente. Os analistas menos rigorosos aceitam o novo ponto de vista primeiro e passam a propagá-lo junto ao seu defensor original. À medida que aumenta o número de pessoas que se posicionam a favor da tese, a prova social se torna cada vez mais forte e atrai cada vez mais pessoas. Está formado o círculo de formigas.

Notem que, nos casos reais que ganham grandes proporções, os discursos por trás desses movimentos não costumam ser obviamente falhos. Tipicamente, são raciocínios elegantes, logicamente consistentes e apoiados em vários fatos e dados reais. Porém, basta exagerar a probabilidade de algumas premissas que favorecerem a tese para que toda ela se torne frágil. Realizar um diagnóstico desse tipo não é uma tarefa simples, especialmente se a maioria das pessoas estiver endossando a tese.

Prova social 2.0

Antes da tecnologia que permitia gravações de áudio, todos os espetáculos musicais eram obviamente assistidos ao vivo. Isso limitava muito o alcance e, por consequência, a fama que um músico poderia atingir, por mais expoente que fosse em seu meio. Em contraste, diversos artistas atingem fama global hoje devido à possibilidade de distribuir suas músicas pela internet com facilidade e baixo custo.

De modo análogo, a existência de redes sociais facilitou muito a publicação de qualquer tipo de discurso. Porém, como o volume de conteúdo criado diariamente é muito grande, é necessário estabelecer algum critério para selecionar o que será prioritariamente propagado. A lógica adotada faz muito sentido: os conteúdos que têm maior aceitação pelo público, medida pelo engajamento nas publicações (curtidas, comentários e compartilhamentos), são os eleitos para propagação mais intensa.

O problema desse mecanismo de seleção é que ele beneficia os conteúdos que são mais atrativos para nossos sistemas 1, que rapidamente decidem o que merece ou não nosso engajamento, antes de maiores ponderações de nossos sistemas 2. Assim, publicações mais apelativas do que analiticamente rigorosas são as que viralizam com maior facilidade nas redes, constituindo o estilo moderno de prova social.

Dando um passo além, as redes sociais se sofisticaram a ponto de selecionar o que é exibido para você não com base nas taxas de aprovação do público em geral, mas com base na aprovação do público com perfil semelhante ao seu. Assim, você já tem uma inclinação natural para concordar com os conteúdos que lhe são exibidos e, do seu ponto de vista, a maioria das pessoas defende as mesmas linhas de pensamento. É difícil de pensar em canais de comunicações melhores do que as redes sociais de hoje para a criação de tendências induzidas por prova social.

Se esse diagnóstico lhe parecer mais aplicável a discussões políticas do que a temas relacionados a economia e investimentos, lembre-se das empresas que cresceram explosivamente no mercado financeiro prometendo altos retornos em pouco tempo, através de métodos especiais e teses secretas que seriam reveladas “apenas” a quem estivesse disposto a pagar um valor simbólico… Certamente você conseguirá pensar em alguns nomes.

O copo meio cheio

A dinâmica que descrevemos é sem dúvida negativa para a economia geral, pois tende a prejudicar a qualidade das decisões de alocação de capital. Com isso, os recursos produzidos pelo trabalho humano são empregados de maneira sub ótima e, em última instância, reduz a riqueza material disponível para a sociedade.

Apesar dessas consequências trazidas pela mídia moderna nos parecerem inevitáveis, buscamos enxergar também o outro lado da moeda: os exageros de mercado criados por essas macrotendências é que geram, de tempos em tempos, as oportunidades de comprarmos ações por preços mais baixos do que o razoável ou, quando o movimento exagerado é no sentido inverso, de vendermos ações por mais do que deveriam valer.

Porém, para aproveitar as oportunidades geradas pelos erros coletivos, é antes necessário não ceder à tendência de participar deles. O primeiro passo é o que buscamos descrever através desta carta: saber que erros coletivos acontecem e entender os mecanismos através dos quais eles se desenvolvem e contaminam os mercados.

A partir de então, o que nos gerou excelentes resultados ao longo dos anos foi manter uma forte cultura de disciplina, rigor metodológico e confiança em nossas próprias análises. Baseados nisso é que, ao longo desse ano, investimos nosso tempo em análises de empresas, ao invés de aderirmos à moda de projetar o futuro macroeconômico e político do mundo, e realizamos uma série de compras de ações a preços que julgamos bastante atrativos.

O que melhor representa a convicção de que teremos bons retornos sobre os investimentos feitos nesse ano são os aportes de nosso próprio capital no Ártica Long Term FIA, feitos no passado recente. Apesar da bolsa ter voltado a subir recentemente, não sabemos se é o início de um novo ciclo de alta ou se ainda veremos quedas nos próximos meses. Movimentos de curto prazo fazem parte das incertezas aleatórias e qualquer previsão sobre eles poderia se tornar uma fonte de erros, nos moldes que acabamos de discutir.

“Learn how to ignore the examples from others when they are wrong, because few skills are more worth having” – Charlie Munger

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